lunes, 15 de febrero de 2010

o recrutamento das gentes do mar na América portuguesa (séculos XVII e XVIII)

Vicissitudes de um império oceânico: o recrutamento das gentes do mar na América portuguesa (séculos XVII e XVIII)
Luiz Geraldo Silva
Graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco, Mestrado em História do Brasil pela mesma Universidade e Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo. É Professor Adjunto da Universidade Federal do Paraná e tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Colônia


Assim, desde o século XVI, mas sobretudo entre os séculos XVII e XVIII, sabe-se que muitos escravos negros – africanos ou nascidos em Portugal – foram empregados nos navios da carreira da Índia. Como revela Saunders, muitos deles – senão a maioria – eram de propriedade de marujos recrutados pela Marinha portuguesa. Empregando seus escravos nos navios, os marujos acabavam por perceber seu salário e o salário de seus cativos. Desse modo, eles viam aumentar seus rendimentos pecuniários além de serem poupados de trabalhos pesados executados a bordo, os quais acabavam por ficar a cargo dos escravos. Do ponto de vista das autoridades portuguesas, o expediente de empregar escravos acabava sendo encarado como um meio normal e corrente de suprir lacunas na tripulação. Em 1559, o navio Águia, que fazia a carreira da Índia, “só se salvou de naufragar no canal de Moçambique devido aos esforços feito pelos negros que estavam a bordo”. Funcionários da Casa da Índia declararam em 1712 que muitos navios da carreira não teriam alcançado Portugal “se não fosse o trabalho contínuo dos escravos negros que vão neles”. Em 1738 o Vice-Rei da Índia, D. Pedro de Mascarenhas (1732-1740), afirmou que quando não havia escravos provenientes de Moçambique nos galeões estes não podiam navegar. Segundo ele, os escravos negros eram empregados nos navios “como trabalhadores no convés realizando o trabalho duro, como acontece geralmente”.6
Ao mesmo tempo, a navegação marítima portuguesa interna ao Índico e ao Pacífico passou a empregar um número considerável de marujos asiáticos desde o século XVI, e os poucos brancos que restaram nos navios ocupavam as posições superiores ou as funções de soldados ou artilheiros. Calcula-se que o número de marinheiros disponíveis no Estado da Índia em inícios do século XVI nunca tenha sido superior a 400 pessoas – um número desprezível considerando as demandas de todas as frotas que partiam de Lisboa a Goa, e vice-versa. Do mesmo modo, como se verá adiante, apelar-se-á para este recurso na América portuguesa entre os séculos XVII e XVIII: marujos foram aqui recrutados primeiro para suprir demandas da carreira da Índia, depois para suprir a Marinha Real portuguesa na Europa. Finalmente, muitos marinheiros foram incorporados às forças navais para servir na própria América, notadamente nas guerras luso-espanholas levadas a efeito no Sul do Brasil durante a segunda metade do século XVIII. Recrutar marujos entre africanos, asiáticos e, depois, entre habitantes da América portuguesa constituía, pois, prática que concorria para a manutenção de um império talassocrático que, paradoxalmente, não dispunha de um considerável contingente de pessoal marítimo em seu próprio domínio terrestre europeu.7
Antes, porém, de analisar as práticas do recrutamento para a Armada portuguesa levadas a efeito na América, cabe verificar como, à mesma época, outras nações européias procediam no recrutamento de pessoas para completar as guarnições de seus barcos de guerra e de comércio.
..........................................A prática do recrutamento para a carreira da Índia na Cidade da Bahia não era realizada sem contradições em relação à vocação marítima dos recrutados. Na verdade, bem longe de critérios baseados na experiência marítima, as autoridades consideravam o serviço nas tripulações da carreira uma pena para criminosos e pessoas indesejáveis. Em julho de 1672 estacionara no porto de Salvador, para reparos, o navio São Pedro de Rates, o qual partira de Lisboa, sob comando do capitão Jerônimo de Carvalho, provavelmente em março ou abril daquele ano. Meses depois, a 23 de novembro de 1672, o então governador-geral do Estado do Brasil, Affonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça (1671-1673), enviou carta aos capitães-mores do Recôncavo informando que havia necessidade de pessoal da terra para completar a guarnição da “nau da Índia”. Deviam os destinatários “receber esta, que guardará com todo segredo”, e lançar “os olhos nos vadios, e criminosos que nesse seu distrito houver, e em 29 deste [mês] os prenda, e os remeta a bom recado, com a memória dos nomes, e causas, porque cada um deles merece ser preso”. O governador-geral era bastante claro nesta e em outra missiva do mesmo dia, destinada ao sargento-mor da Vila do Camamu, Francisco de Oliveira Tourinho, ao declarar que, com tal procedimento, mataria dois coelhos com uma só cajadada: “minha tenção não é só acudir a esta necessidade da nau da Índia, mas livrar essa Vila de gente vagabunda e perdida”. A idéia do governador-geral era, pois, a de recrutar pessoas vadias e desocupadas para seguir viagem à Índia e “ver o Recôncavo livre de semelhante gente”. 16
http://www.revistanavigator.com.br/navig5/art/N5_art3.doc.

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