A análise desses eventos, que externavam as sociabilidades de “pretos” e “pardos”, deve ser secundada pelo exame das centenas de cartas enviadas por eles solicitando cargos, soldos, promoções, graças, franquias e mercês. Esse amplo conjunto documental,
pouquíssimo explorado, pode revelar muito dessas sociabilidades, e externar conflitos entre pretendentes a postos nos terços e entre homens de cor e autoridades coloniais. Em janeiro de 1801, por exemplo, o sargento mor do Regimento dos Homens Pardos do Recife, Anastácio Clemente José, escreve ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, queixando-se dos seus superiores por não o terem promovido e por estar sendo constrangido a pedir sua reforma. Com todas as letras, ele acusa um “homem bom” da capitania, o Tenente Coronel Miliciano dos Nobres, Manuel Francisco Maciel Monteiro, de estar favorecendo ao pardo Dionísio Antônio Gomes de Sá na ocupação do cargo de Mestre de Campo de seu regimento. O Tenente Monteiro — acusava Anastácio — era amigo de um dos governadores de Pernambuco à época do triunvirato encabeçado pelo bispo D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho. Vai daí suas
prerrogativas, que o permitiam passar por cima da norma crioula, e mesmo das normas metropolitanas, e impor novos critérios, decorrentes de relações de patronato, nos processos de promoção aos cargos elevados da hierarquia dos terços de Henriques e Pardos.
pouquíssimo explorado, pode revelar muito dessas sociabilidades, e externar conflitos entre pretendentes a postos nos terços e entre homens de cor e autoridades coloniais. Em janeiro de 1801, por exemplo, o sargento mor do Regimento dos Homens Pardos do Recife, Anastácio Clemente José, escreve ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, queixando-se dos seus superiores por não o terem promovido e por estar sendo constrangido a pedir sua reforma. Com todas as letras, ele acusa um “homem bom” da capitania, o Tenente Coronel Miliciano dos Nobres, Manuel Francisco Maciel Monteiro, de estar favorecendo ao pardo Dionísio Antônio Gomes de Sá na ocupação do cargo de Mestre de Campo de seu regimento. O Tenente Monteiro — acusava Anastácio — era amigo de um dos governadores de Pernambuco à época do triunvirato encabeçado pelo bispo D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho. Vai daí suas
prerrogativas, que o permitiam passar por cima da norma crioula, e mesmo das normas metropolitanas, e impor novos critérios, decorrentes de relações de patronato, nos processos de promoção aos cargos elevados da hierarquia dos terços de Henriques e Pardos.
Muitos pretendentes aos postos de oficiais nos corpos dos Henriques e de Antônio Felipe Camarão se diziam seus herdeiros e sucessores, e nada há mais falso que isto. Henrique Dias nem um filho deixou, onde se conservasse seu nome, ao mesmo tempo, que qualquer Negro, que daqui vai para essa Corte requerer, vai logo dizendo que é Neto de Henrique Dias, como fizeram dois capitães, que aqui andam, os quais ambos escaparam ao Cativeiro, e como de presente estão fazendo nessa Corte dois sargentos Mores Pardos destes Terços, que ambos há pouco anos foram cativos, e hoje querem as honras, e soldos de sargentos mores, sem merecimento ou utilidade; do mesmo jaez são os Mestres de Campo, homens ordinariamente de inferior condição. 16
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Joaquim dos Santos. Estes, conforme o senhor S., “se informaram de mim mesmo, sabendo que eu tinha estado nas Antilhas, da maneira que vivem os rebeldes de São Domingos. Eu lhes disse que muito mal; e acrescentei: ‘tudo quanto fizeram os franceses seus senhores, eles têm estragado e arruinado e se os ingleses os não patrocinassem, já há muito os tinha levado o demônio’.
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Joaquim dos Santos. Estes, conforme o senhor S., “se informaram de mim mesmo, sabendo que eu tinha estado nas Antilhas, da maneira que vivem os rebeldes de São Domingos. Eu lhes disse que muito mal; e acrescentei: ‘tudo quanto fizeram os franceses seus senhores, eles têm estragado e arruinado e se os ingleses os não patrocinassem, já há muito os tinha levado o demônio’.
Porém, suas idéias de raça e cor acabaram por pesar novamente em fevereiro de 1823, quando Pedroso, juntamente com outros militares de cor, depôs a Junta dos Matutos, encabeçada pelo morgado do Cabo, Francisco Paes Barreto, e tornou-se senhor absoluto do Recife por uma semana. “A Pedrosada”, escreve Evaldo Cabral de Mello (2001: 29), “foi um levante de conotações raciais, que obrigou a Junta dos Matutos a se retirar para o interior e entregou o Recife, durante vários dias, aos batalhões de pretos e mestiços que aclamavam Pedroso como outro Cristóvão, o ‘imortal haitiano’, prometendo represálias contra brancos e ‘caiados’”. Perdoado pelo Imperador Pedro I por este ato, Pedroso terá papel destacado, servindo à causa imperial, na ocupação da província quando da eclosão Confederação do Equador (1824) (Silva 2001: 515-520). Em 1834, o caudilho negro fez sua última aparição na esfera pública. Naquele ano, ouvira na Corte que José Bonifácio foi Em primeiro lugar, considerar-se-á os projetos formulados pelo reformismo ilustrado na segunda metade do século XVIII e inícios do século seguinte, a exemplo do elaborado pelo marquês do Lavradio, o qual consistia em suprimir a oficialidade de cor e subordinar os batalhões negros a legiões mais amplas, comandadas por oficiais brancos regressos das tropas de Ordenanças. Tais projetos foram encaminhados em Pernambuco a partir do governo de José César de Meneses (1774-1787), o qual evocara, em abril de 1782, exemplos de outras partes do império para fundamentar sua proposta: “bem se vê que na Índia, onde servi posto de 7 anos, as Companhias de Sipais, cujo exercício é o mesmo que
dos Henriques, que correspondem aos Pardos e Pretos nesta capitania, sempre os seus
Capitães são brancos e tirados da Tropa”. Ademais, lembrava ainda Meneses do exemplo baseado no que “louvavelmente ordenou no Rio de Janeiro o Marquês de Lavradio, pois me
consta fizera os oficiais maiores dos Corpos em que estão homens brancos e de cuja honra
se podem fiar”.
Em segundo lugar, sublinhe-se que no interior das lutas políticas ocorridas nas primeiras décadas do século XIX vários foram os projetos formulados em torno dos regimentos de “pretos” e “pardos”. Na verdade, o espírito de projetos desse tipo reside na questão da mobilização desses segmentos — que, como se viu, constituía parte majoritária da população —, por parte de diferentes grupos políticos. Assim, tal aspecto ganha relevância surpreendente ao se considerar que as forças políticas em confronto contra o Reino Unido em 1817, contra o governador Rego Barreto em 1821 — quando do conflito inspirado pelo movimento constitucional que levou ao poder a primeira Junta de Governo da província —, bem como contra o Império, quando da Confederação do Equador, em 1824, precisaram da participação maciça de milícias recrutadas entre a população de cor para fazer valer seus interesses. Afinal, contar com força armada formada por gente local constituía um dos pilares fundamentais dos projetos políticos então em construção em torno do formato do Reino Unido e, depois, do Estado independente. Nessa direção, leve-se em conta o longo e detalhado projeto, elaborado à luz dos acontecimentos da revolução de 1817, pelo último governador colonial da província de Pernambuco, Luís do Rego Barreto (1817-1821). A 20 de novembro de 1818, este informa a Tomás Antônio Vila Nova Portugal da “organização a que estou procedendo dos Corpos de Milícias segundo o Novo Plano”.
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Neste, seguia-se à risca as sugestões anteriores, pois se reduzia drasticamente os efetivos e o número dos antigos terços de “pretos” e “pardos” existentes no Recife, bem como os transformava em legiões sob controle de oficiais brancos. Assim, os corpos militares das gentes de cor perdiam sua organização em forma de “terço” e passavam a se estruturar em forma de legiões. Isto equivalia mudar o comando dos corpos, que na antiga forma cabia ao mestre de campo, ou coronel, e ao sargento-mor (Salgado 1985: 98). Contudo, este tipo de estruturação dos corpos constituídos pelos negros já havia sido implementado, pelo menos aparentemente, ao longo do breve governo 23 revolucionário de 1817 (março a maio). Isso é sugerido na defesa de um dos implicados, o sargento-mor do terço dos Henriques do Recife, Joaquim Ramos de Almeida. Conforme uma das peças de sua defesa, o batalhão dos negros ao longo da revolução “era pequeno, e todo bisonho, e aumentado com escravos, que se tiraram à força de seus senhores: esta gente como é público foi mandada disciplinar por oficiais brancos, aquartelada na
Soledade, atalaiada pela cavalaria de brancos”. 30 . Em geral, carece-se de elementos mais precisos e abundantes acerca da organização dos corpos militares ao longo do breve governo revolucionário de 1817. Contudo, se os negros foram de fato destacados para servir em batalhões chefiados por oficiais brancos, como é afirmado na defesa do “preto” Joaquim Ramos de Almeida, a revolução esteve em franco desacordo com os anseios e demandas dos homens de cor.
Finalmente, considere-se o plano radical elaborado ao tempo da junta de governo
presidida por Gervásio Pires Ferreira (1821-1822). Ora, este primeiro governo constitucional da província de Pernambuco foi garantido, como se sabe, graças à força das armas. Em primeiro lugar, sua instauração decorreu da conflagração entre as forças locais, armadas pelos grandes senhores de terras da Zona da Mata Norte e pelos grandes comerciantes do Recife — a exemplo do próprio Pires Ferreira —, que combateram as débeis e combalidas tropas leais ao último governador colonial, Luís do Rego Barreto (1817-1821). Este, pois, capitula em face da superioridade das tropas locais. Em segundo lugar, Pires Ferreira, como se sabe, repeliu durante várias vezes o desembarque de tropas egressas do Algarves, as quais ameaçavam se instalar na província por ordem do Congresso de Lisboa (Melo 1973, I: 62). Assim, tornava-se imprescindível constituir forças militares.
Como se percebe, as tropas de “pretos” e “pardos” eram mais numerosas que as dos
“brancos” e, além disso, foram estruturadas em formato profissional, pois, estes “três
corpos”, informa Pereira da Costa (1983, VII: 66), foram “devidamente armados, fardados
e disciplinados, vencendo soldo”. Aparentemente, conforme Joaquim de Melo, sua criação
havia sido inspirada pelas brigadas napoleônicas, mas parece claro que se ofereceu aos
“pretos” e “pardos” naquelas circunstâncias vantagens e compensações tipicamente
barrocas.Assim, não importava se o grupo de Pires Ferreira era mais constitucional, ou mais resistente ao projeto do Rio de Janeiro, que o grupo liderado pelos irmãos Cavalcanti e pelo morgado do Cabo, Francisco Paes Barreto: todos careciam ter os soldados de cor ao seu lado.
Esse quadro, como sugeriu Hendrik Kraay (2003) em relação ao caso da Bahia, mudará radicalmente após 1831, ano da abdicação de D. Pedro I e da criação da Guarda Nacional. Daí em diante, inicia-se o processo de nacionalização do Estado — o qual, até então, revelava-se mais senhorial que propriamente nacional.
dos Henriques, que correspondem aos Pardos e Pretos nesta capitania, sempre os seus
Capitães são brancos e tirados da Tropa”. Ademais, lembrava ainda Meneses do exemplo baseado no que “louvavelmente ordenou no Rio de Janeiro o Marquês de Lavradio, pois me
consta fizera os oficiais maiores dos Corpos em que estão homens brancos e de cuja honra
se podem fiar”.
Em segundo lugar, sublinhe-se que no interior das lutas políticas ocorridas nas primeiras décadas do século XIX vários foram os projetos formulados em torno dos regimentos de “pretos” e “pardos”. Na verdade, o espírito de projetos desse tipo reside na questão da mobilização desses segmentos — que, como se viu, constituía parte majoritária da população —, por parte de diferentes grupos políticos. Assim, tal aspecto ganha relevância surpreendente ao se considerar que as forças políticas em confronto contra o Reino Unido em 1817, contra o governador Rego Barreto em 1821 — quando do conflito inspirado pelo movimento constitucional que levou ao poder a primeira Junta de Governo da província —, bem como contra o Império, quando da Confederação do Equador, em 1824, precisaram da participação maciça de milícias recrutadas entre a população de cor para fazer valer seus interesses. Afinal, contar com força armada formada por gente local constituía um dos pilares fundamentais dos projetos políticos então em construção em torno do formato do Reino Unido e, depois, do Estado independente. Nessa direção, leve-se em conta o longo e detalhado projeto, elaborado à luz dos acontecimentos da revolução de 1817, pelo último governador colonial da província de Pernambuco, Luís do Rego Barreto (1817-1821). A 20 de novembro de 1818, este informa a Tomás Antônio Vila Nova Portugal da “organização a que estou procedendo dos Corpos de Milícias segundo o Novo Plano”.
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Neste, seguia-se à risca as sugestões anteriores, pois se reduzia drasticamente os efetivos e o número dos antigos terços de “pretos” e “pardos” existentes no Recife, bem como os transformava em legiões sob controle de oficiais brancos. Assim, os corpos militares das gentes de cor perdiam sua organização em forma de “terço” e passavam a se estruturar em forma de legiões. Isto equivalia mudar o comando dos corpos, que na antiga forma cabia ao mestre de campo, ou coronel, e ao sargento-mor (Salgado 1985: 98). Contudo, este tipo de estruturação dos corpos constituídos pelos negros já havia sido implementado, pelo menos aparentemente, ao longo do breve governo 23 revolucionário de 1817 (março a maio). Isso é sugerido na defesa de um dos implicados, o sargento-mor do terço dos Henriques do Recife, Joaquim Ramos de Almeida. Conforme uma das peças de sua defesa, o batalhão dos negros ao longo da revolução “era pequeno, e todo bisonho, e aumentado com escravos, que se tiraram à força de seus senhores: esta gente como é público foi mandada disciplinar por oficiais brancos, aquartelada na
Soledade, atalaiada pela cavalaria de brancos”. 30 . Em geral, carece-se de elementos mais precisos e abundantes acerca da organização dos corpos militares ao longo do breve governo revolucionário de 1817. Contudo, se os negros foram de fato destacados para servir em batalhões chefiados por oficiais brancos, como é afirmado na defesa do “preto” Joaquim Ramos de Almeida, a revolução esteve em franco desacordo com os anseios e demandas dos homens de cor.
Finalmente, considere-se o plano radical elaborado ao tempo da junta de governo
presidida por Gervásio Pires Ferreira (1821-1822). Ora, este primeiro governo constitucional da província de Pernambuco foi garantido, como se sabe, graças à força das armas. Em primeiro lugar, sua instauração decorreu da conflagração entre as forças locais, armadas pelos grandes senhores de terras da Zona da Mata Norte e pelos grandes comerciantes do Recife — a exemplo do próprio Pires Ferreira —, que combateram as débeis e combalidas tropas leais ao último governador colonial, Luís do Rego Barreto (1817-1821). Este, pois, capitula em face da superioridade das tropas locais. Em segundo lugar, Pires Ferreira, como se sabe, repeliu durante várias vezes o desembarque de tropas egressas do Algarves, as quais ameaçavam se instalar na província por ordem do Congresso de Lisboa (Melo 1973, I: 62). Assim, tornava-se imprescindível constituir forças militares.
Como se percebe, as tropas de “pretos” e “pardos” eram mais numerosas que as dos
“brancos” e, além disso, foram estruturadas em formato profissional, pois, estes “três
corpos”, informa Pereira da Costa (1983, VII: 66), foram “devidamente armados, fardados
e disciplinados, vencendo soldo”. Aparentemente, conforme Joaquim de Melo, sua criação
havia sido inspirada pelas brigadas napoleônicas, mas parece claro que se ofereceu aos
“pretos” e “pardos” naquelas circunstâncias vantagens e compensações tipicamente
barrocas.Assim, não importava se o grupo de Pires Ferreira era mais constitucional, ou mais resistente ao projeto do Rio de Janeiro, que o grupo liderado pelos irmãos Cavalcanti e pelo morgado do Cabo, Francisco Paes Barreto: todos careciam ter os soldados de cor ao seu lado.
Esse quadro, como sugeriu Hendrik Kraay (2003) em relação ao caso da Bahia, mudará radicalmente após 1831, ano da abdicação de D. Pedro I e da criação da Guarda Nacional. Daí em diante, inicia-se o processo de nacionalização do Estado — o qual, até então, revelava-se mais senhorial que propriamente nacional.
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